quinta-feira, 22 de abril de 2010

Miguel Ângelo / Alexander the Great



Desconfio sempre dos extremos. Os Delfins outra coisa não conheceram durante a sua carreira. Em meados de 90 eram os melhores do mundo: o Rui Fadigas fazia slaps como ninguém, as letras do Miguel Ângelo eram profundas como a Boca do Inferno e o António Cunha era uma autoridade digna de figurar ao lado de outros monstros da capital do Império, particularmente daqueles que haviam fundado a União Lisboa.
Depois surgiu a catrefada de humoristas que se conhece desde o «Levanta-te e Ri» e, subitamente, os Delfins foram expatriados. Eram de Cascais e estavam longe do marxismo de caviar. Betos lhes chamaram e gostar deles passou a figurar na lista de indecências e parolices concebida pelos vitorianos cá do burgo. Se querem um exemplo de como o poder se manifesta mais nos processos do que nos sujeitos, aí o têm. Esta coisa de persistir em adequar os gostos dos outros aos nossos não é feitio; é mesmo defeito. E parece não haver como escapar. Se anuímos é porque sim, se não anuímos é também porque sim.
Os Delfins não deixam de ser uma Laranja Mecânica: não escaparam aos processos mais extremados. Desfrutaram disso mas também padeceram dos mesmos efeitos.
Passado algum tempo de toda essa convulsão, digam-me: valeu a pena?

domingo, 18 de abril de 2010

As máquinas de James Cameron



Os objectos são tão ou mais importantes nas nossas vidas do que algumas pessoas. E não falo da utilidade decisiva de determinados utensílios na satisfação dos desejos; ou não falo apenas disso. Refiro-me também à relevância de tudo quanto nos rodeia no que diz respeito à determinação daquilo que somos. A cultura não é, por isso, apenas aquilo que se cria mas também as recriações que se geram na nossa interacção com as coisas.
O que nos dizem então estas maquinetas do James Cameron? No filme Aliens, Ripley socorre-se de uma máquina – há boa maneira do desenrasca - para lutar contra a natureza. Por obra do acaso a máquina estava ali; Ripley sabia manobrá-la e encontrou-lhe uma utilidade desconhecida. No Avatar, a máquina é concebida com o intuito preciso de chacinar quem se lhe oponha.
Nos dois filmes as máquinas estão do lado do Homem. A diferença é esta: quando o Homem aparece como vítima, é uma máquina colocada nas condições mais aleatórias que o salva. Quando o Homem é o algoz, a máquina pré-concebida e cientificamente projectada com um determinado intuito não lhe vale de nada.
Parece que o Homem está destinado a ser bem sucedido apenas quando não se dá ao trabalho de projectar as coisas. Ninguém o diria: James Cameron é o realizador mais calculista da história de Hollywood e, aparentemente, não tem razões para se queixar.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Barroso / Volkan Demirel



Há coisas que se fazem com a consciência que isso que se faz nos torna dúbios, falhos, malogrados, frustrados, alienados, o que seja. Não é o caso do futebol. Eu gosto de futebol por variadíssimas razões, de entre as quais a beleza do jogo não é, certamente, a mais forte. Em primeiro lugar, se não houvesse clubes contra os quais pudéssemos descarregar todas as nossas frustrações e os nossos ódios bacocos, o futebol não se tinha transformado na poderosa indústria que efectivamente é na actualidade. Em segundo lugar, o futebol ainda é - para além dos impulsos sexuais e dos momentos íntimos na casa de banho – aquilo que nos arroja contra o chão, aquilo que mais intensamente nos recorda a nossa vil condição terrestre. Num mundo de luvas brancas, batas, laboratórios e encerramento nervoso das tascas, ainda há quem assuma, sem assombros, a sua condição animalesca. O futebol torna-nos mesquinhos, irritadiços, invejosos, rústicos, revanchistas, impetuosos, crianças; o futebol torna-nos nisso tudo que somos em circunstâncias muito diferentes. Mas nada é assim tão diferente do futebol. Tenhamos, como exemplo, o mundo académico. Também aí há intrigas, egos feridos, grupos, tendências, vacas sagradas, estratégias de marketing; também aí as pessoas marcam golos e sofrem frangos, magoam os outros, humilham o adversário, expõem as suas fraquezas; também aí se classifica, se desce de divisão, se glorifica e se fazem prognósticos. Pois bem, mas o que distingue o futebol de todas as conveniências dos jogos sociais são homens que não se inibem de justificar as más exibições com diarreias de última hora.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Tom Waits / Ron Perlman



Eu, ao contrário da Catarina Furtado e daquelas pessoas que têm muito bom gosto, não gosto da voz do Tom Waits. Talvez gostasse se tivesse algum apreço literário por histórias do mar e proezas de piratas. É que quando o oiço cantar, tenho a impressão de estar diante de algum náufrago perdido entre garrafas de rum e mastros despedaçados. Ora, eu nunca fui em grandes epopeias marítimas e Sexta-feira (um seu criado) só mesmo em Albufeira, como canta o Reininho.

É sobejamente conhecida uma história de Gavin Bryars e Tom Waits. Quando vivia em Londres, Bryars trabalhava num filme de Alan Power sobre a vida dos mendigos na cidade. Um dia gravou uma canção entoada por um desses mendigos. O título era «Jesus Blood Never Failed Me Yet». Aparentemente, e ao contrário do que era habitual nesta recolha de canções de rua, o velho mendigo – que costumava entreter a equipa de filmagens com malabarismos de chapéu - não estava embriagado. Bryars achou a melodia tão interessante que, um pouco por acaso – como sempre acontece nestas coisas – acabou por criar um loop orquestrado do tema.
Obviamente não me vou dedicar aqui ao exercício semiótico acerca do valor estético da canção. Se o caríssimo leitor pretender ler coisas interessantes, encaminho-o para os blogs de José Pacheco Pereria, Pedro Mexia ou Daniel Oliveira. Aqui, o que é relevante, é que, anos mais tarde, Gavin Bryars convidou Tom Waits para cantar a música. É fácil de entender porquê: Tom Waits é mais genuinamente mendigo do que qualquer outra pessoa que habite o lugar mais esconso das grandes metrópoles.

Há certos convites que não são propriamente elogiosos. Quando li «O Nome da Rosa» já havia visto, em criança, o filme de Jean-Jacques Annaud. Confesso que não me foi difícil conceber, através da imaginação, os rostos mais ou menos vulgares de certos monges. Mas no que respeitava aos mais feios, a minha memória do filme sempre me atraiçoava. No caso de Salvatore então era-me absolutamente impossível desligar-me da figura de Ron Perlman; o papel assentava-lhe que nem uma luva.
O que pensarão os actores quando alguém vai ter com eles e lhes diz: «Olhe, nós precisamos de um actor para protagonizar o papel de um corcunda, de um feio, de um monstro, de uma aberração, o que seja, e lembramo-nos de si»? Pior ainda é saber que são os próprios actores quem, conscientes das suas capacidades, não se inibem de concorrer a determinados castings.
Mas o contrário também acontece: Mourinho já disse que queria o George Clooney a protagonizar um filme sobre a sua vida; Conan O’Brien exigiu Tilda Swindon. O meu actor de eleição para interpretar a minha pessoa, infelizmente, já faleceu: dava pelo nome de John Holmes.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Orson Welles / Andy Richter



Fazendo uma breve pesquisa pela Wikipédia, ficamos a saber que Orson Welles foi adepto do Botafogo. É isto o que verdadeiramente importa saber na vida de um dos mais geniais realizadores de cinema. Os nossos primos do outro lado do Atlântico, não contentes com a afirmação peremptória de que Deus é brasileiro, ainda nos atiram esta à cara: «Orson Welles era do Botafogo». Não importa saber se o era ou não. Esta afirmação pura e simples é tanto mais interessante quanto mais irrelevante se torna saber se o realizador sequer gostava de futebol. Já Marcel Proust escrevia - na obra «Em Busca do Tempo Perdido» e indicando as opiniões que a sociedade mantinha acerca de Swann - que as pessoas carregam consigo as várias personalidades forjadas pelas perspectivas que os outros construíram sob o signo das convivências e das conveniências sociais. Stendhal corroborava esta ideia ao afirmar que "Um homem pode alcançar tudo na solidão, excepto um carácter". É talvez por isso que nos interessamos tanto pelo que os outros pensam de nós; porque tudo o que seja dito pelo outro nos soará sempre a novidade e confirmará aquilo que somos. E apesar de Alain de Botton sugerir que o olhar dos outros é um espelho reflectindo imagens maiores ou menores do que o original, tenho para mim que os outros nunca pensam tão bem ou tão mal de nós quanto somos tentados a crer. Há um exemplo recente que comprova o quanto um acontecimento pode influenciar a nossa opinião acerca do que quer que seja. Todos caímos no erro de atribuir à personalidade de Conan O’Brien o facto comezinho de haver injustiças que se justificam pelos números. Desde então ainda não conseguimos olhar para ele sem que essa ideia de repulsa pela iniquidade nos não tolde a visão. No que me toca, estou a tentar libertar-me disso; disso e do facto de Orson Welles ter sido adepto do Botafogo.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Jon Stewart / Jorge Jesus



Este blog é redutor? Sim.
Para este blog, as personalidades existem apenas na medida em que lhes pode ser atribuída uma semelhança física com outra personalidade exposta às mesmas condições? Sem dúvida.
Não há qualquer interesse no que se escreve neste blog? Admito.
O autor deste blog importa-se com isso? Nadinha.

O autor deste blog defende que toda a gente, algum dia, necessita de um lugar onde o politicamente correcto, as convenções sociais, as irrepreensibilidades éticas e o semideísmo podem ser mandados às urtigas. Que, na medida do possível, se não insulte ninguém gratuitamente, eis ao que se propõe. É claro que nunca se saberá se o Pedro Abrunhosa considera um insulto ser comparado ao Homem Invisível. Contudo, e assumindo a impossibilidade de saber se os outros são ou não são vidrinhos de cheiro, o anonimato nunca servirá para insultar quem quer que seja; exceptuando, talvez, instituições, tribos, sociedades e quejandos ajuntamentos.
É um pouco por isso que eu gosto do Jorge Jesus e não vou muito à bola com o Stewart. Se no caso do português o politicamente correcto é, como diria o próprio, “uma treta”, para o americano é um modo de vida. O género incensurável da comédia política é o que de mais íntegro e inatacável se pode fazer. Como nos opormos à crítica à corrupção, à guerra, à baixa política e ao maquiavelismo? É como discutir com alguém que, brincando, vai dizendo o que bem lhe apetece.
Pelo contrário, para dar pontapés na gramática, são necessários tomates. É preciso tê-los no sítio para ironizar com o fair-play dos outros. O Jorge Jesus tem aquela postura à mete-nojo dos antigos; masca chiclete e mostra mais vezes a língua do que o bom senso admite. É certo que tem despertado o discurso mais ou menos saudosista e salazarento do «subiu a pulso» ou do «subir-a-pulsismo»; é certo que tem justificado o revanchismo de muitos treinadores e comentadores da treta que, menos secretamente do que desejariam, odeiam o José Mourinho e todos os seus clones mais ou menos bem sucedidos. Mas como de más interpretações está o inferno cheio, continuo a dizer, ao jeito maniqueísta (porque todos se recusam a sê-lo), que prefiro, de longe, o português ao americano.