terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Maurício Baia / Rui Santos



Não tenho dados concretos e exaustivos acerca dos tempos de antena na televisão portuguesa, mas creio que não estarei longe da verdade se afirmar que Rui Santos é a personalidade da sociedade portuguesa que ocupa maior espaço no horário televisivo. Vou repetir isto, não vá o leitor desleixar-se no remanso da blogosfera: o Rui Santos é a personalidade que, em Portugal, frui do maior espaço público para expressar as suas opiniões. É que é mesmo o Rui Santos! Se souberem de outra pessoa que logra mais tempo para expor, semanalmente, as suas ideias e opiniões a uma plateia tão extensa, façam o favor de me contatar. É que nem o Marcelo Rebelo de Sousa!
Há muitos fatos reveladores no modo como os dispositivos políticos de uma sociedade funcionam, mas talvez nenhum seja tão premente como este. É um pouco como se exigíssemos um aforismo do género: “Diz-nos quem fala e dir-te-ei em que país vives.”.  Em Portugal, e lamento se vos enfado com repetições tão dramáticas, quem detém o maior espaço público de opinião é o Rui Santos. É caso para perguntar: “Mas que raio de democracia é esta?”.
Porque é que acontece isto? Como é que um simples jornalista desportivo consegue prender uma plateia considerável em frente da televisão, praticamente sem reportagens que o animem, de rubricas que o sustentem, de coisa que o valha que nos distraia da sua presença? Até o Pacheco Pereira necessita de apelar à sua “dinamite cerebral” e quejandos artifícios cénicos para nos prender a atenção. Mas não o Rui Santos. O Rui Santos limita-se a falar.
Façam a experiência. Cheguem a casa, sentem-se numa cadeira e comecem a debitar opiniões acerca do que quer que seja, e verão que não conseguem com a família aquilo que o Rui Santos consegue com uma percentagem elevada da população portuguesa: prender-lhes a atenção. O Rui Santos consegue com anónimos do país inteiro, aquilo que ninguém consegue com a família e que poucos (uma elite privilegiada) conseguem com o cônjuge: fazer-se ouvir! É bem provável, aliás, que muitos de vocês já tenham sugerido silêncio à digníssima esposa para ouvir com mais propriedade o Sr. Rui Santos informar-vos há quantos dias, meses e horas está Portugal sem a puta da Casa das Transferências ou o raio que o parta!

sábado, 10 de novembro de 2012

Mark Wahlberg/John Cena



 

 

Disse Lobo Antunes, numa qualquer entrevista, que um homem começa a pensar na sua finitude no momento em que assume a responsabilidade de atender o telefone ou a porta, isto é, quando o pai, morrendo, depõe, no filho, para além dos bens materiais, a herança da mortalidade. Uma espécie de passagem de testemunho, entenda-se: “Agora atendes o telefone. És o homem da casa. És mortal!”.
Num determinado sentido, a possibilidade da morte é um “faz-te um homem!”, por oposição à ingenuidade dos sonhos da juventude; sonhos de imortalidade, de infindos projectos e de possibilidades ilimitadas. A única impossibilidade é mesmo a da morte.
A juventude é marcada tanto pela força dos ideais como pela inconsciência – mais ou menos justificada – da sua finitude. É talvez por esse motivo que Bernard Shaw dizia que a juventude é desperdiçada nos jovens; talvez porque a sua vitalidade provém da ilusão da imortalidade quando é a consciência do fim e dos limites o motor de todo o movimento criativo.
Serve isto para dizer que é possível que a imaginação e a criação tomem impulso no medo.  No filme Madadayo, de Akira Kurosawa, explica um mestre aos seus alunos que o medo é um efeito próprio da imaginação. Porque é que, sendo adulto, se tem medo do escuro? Porque aquele que se põe a adivinhar o que está no meio das sombras tem medo, criando entidades que não existem senão no fulgor do seu poder criativo. Diríamos, portanto, que a imaginação é proporcional ao medo. Torna-se compreensível, por conseguinete, a imperativa introdutória de Altur Albarrán: “Tenha medo! Tenha muito medo!” aos seus vídeos sem-sentido e desprovidos de interesse, isto é, “Eu sei que isto é uma seca e que não acrescenta nada à sua vida, mas faça lá o favor de se deixar levar pela imaginação.”.
Dou por concluído este exercício pseudo-filosófico com o último filme de Mark Wahlberg. Em Ted,  a personagem do actor americano vive amedrontada com trovões, na presença dos quais se abraça ao seu ursinho falante para executarem um ritual infanto-pornográfico através de uma cantiga criptobuéréré. Este medo irracional e primitivo dos trovões – diríamos, neste caso, próprio da juventude – termina no preciso momento em que John Bennett e Ted se afastam, isto é, quando aquele deixa de ser uma criança dependente do seu urso de peluche para, eventualmente, se transformar num homem.
Como podem constatar através deste exercício manhoso de semiótica, o processo inverte-se: o adulto é aquele que, perdendo o medo, perde a imaginação, faz-se homem, torna-se consciente da sua finitude e, enfim, autoriza um género de contraversão do aforismo de Shaw. O que parece manter-se, contudo, é a associação do medo a um poder imaginativo. Enquanto se tem medo, a vitalidade criativa floresce e permanece. Ela finda quando o homem se torna num João Sem Medo, sem capacidade de ver para além do visível. É por isso que há pessoas que não entendem ou sequer sentem a arte ou o desporto. Não vêem senão uma mulher a ter um ataque epiléptico nas danças contemporâneas ou um homem a correr atrás de uma bola num campo de futebol. Vêem apenas o visível. Para se gostar de Wrestling não é necessário senão isto: ter medo, ter muito medo!

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Pavilhão Atlântico / Senado Galático

Numa época em que bandeiras içadas de pernas para o ar surgem na máxima potências das suas condições de possibilidade, falar de um edifício que se pretende uma nave espacial albergando o cavername invertido de uma nau quinhentista parece, no mínimo, apropriado. Pelo menos foi essa a intenção dos criadores do Pavilhão Atlântico: representar, simbolicamente, a Epopeia dos Descobrimentos, através do travejamento em madeira que sustenta a cobertura do dito pavilhão. Assim, no decurso de todos estes tristes anos, ali se pôde ouvir tanto as deliberações dos capitães do mar e as canções de Dave Matthews, como a chusma a cantar o “Ai Destino” do Tony. No fundo, Portugal é realmente isto: a noite de Dédalo, o primeiro homem-pássaro, e a noite de Tony, o último “homem-pássara”; aquela pássara das quarentonas divorciadas que enxameiam as plateias do Secret Story e lêem a Maria enquanto esperam pelas naves da STCP. É certo que a chusma de outros tempos sofreu as ignomínias das elites. Mas se nessa época se passava fome, era pelo menos por um ideal universal: a descoberta das índias, a demanda do Preste João e a criação do caril, o levantar do véu do continente americano e o celular das periguetes de Fortaleza. Hoje, a chusma que somos nós, se padece as infâmias da troika, é só por um real individualista: um exército de clones sem o 1 de Dezembro nem o 5 de Outubro a preservar os jactos dos que têm demasiada testosterona para serem apenas violadores. “So procreate and pay your taxes”, assim canta Andrew Bird. Nos tempos estranhos que são os nossos, eu diria: “Que a força esteja contigo”; mas de pouco adianta o optimismo geek. A força está com o Jardim Gonçalves.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Jeffrey Tambor / Dr. Phil




É curioso constatar – eu, pelo menos, assim o julgo – como os médicos se tornaram nos padres da modernidade. A imaculabilidade da bata substituiu a dignidade da batina, e os conselhos medievais sobre os cuidados a ter com a alma – cuidados esses que, sem dúvida, pressupunham outros tantos cuidados com o corpo – deram lugar a mil exortações tendo em vista a perfectibilidade do corpo – o que subentende, naturalmente, um sem-número de admoestações atinentes à modelar condução da alma. Há uns tempos submeti-me à imprudência de uma consulta médica e deparei-me com a seguinte questão avançada pelo «profissional de saúde»: “O senhor anda na má vida?”.
Os exames médicos são sempre indiscretos e levianamente impertinentes. Os aparelhos que nos descem pela garganta ou que nos sobem pelo cú são sempre precedidos de mil inquirições sobre as nossas vidas, os nossos vícios, as nossas namoradas ou namorados, os nossos horários, a nossa profissão, o nosso ócio, as nossas pequenas e grandes dores, os nossos hábitos mais íntimos e as nossas partes mais recônditas. Quantas vezes defecamos, quantas vezes urinamos, se temos ou não muitas parceiras sexuais – seja lá o que for para o médico o conceito de “muitas”, que eu temo que seja, de facto, demasiado ambicioso para o meu curto entendimento. E a reverência com que encaramos os médicos, a solicitude com que aceitamos, sem mácula ou sombra de hesitação, todas as suas recomendações enquanto ele nos enfia o grosso indicador pelo reto, apenas é comparável à antiga beatitude dos acólitos da igreja que foram todos os nossos avós para com os padres e diáconos da santa madre católica, apostólica romana. Ninguém ousa desafiar a autoridade medical e a ideologia clínica exalando o odor do formol. Eu próprio, diante da pergunta do médico, apenas consegui balbuciar um tímido: “Como? Não percebi…” quando, na verdade, a minha mente ou alma – chamem-lhe o que quiserem – devolvia o eco de um profundo e cavado: “Na má vida? Quem me dera!”. Trouxesse-me ela a morte!

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Agostinho da Silva / Max Von Sydow



Alguém, um dia, – um sujeito que resolveu irritar um filósofo com as interrupções maquinais de uma câmara de filmar manhosa – perguntou ao Agostinho da Silva o que pensava da morte. Respondeu o filósofo que da morte nada sabia, e o caso dava-se por uma razão muito simples: ainda não morrera para o saber; que o deixassem morrer primeiro e ele, logo depois, se pudesse, viria cá baixo informar os mais curiosos. Ao Derrida perguntaram-lhe – também diante das câmaras, vá-se lá saber a importância deste denominador comum – o que pensava ele do amor. O francês não pediu que lhe deixassem experimentar a coisa; exigiu que lhe colocassem uma pergunta mais recta e objectiva, criticando esse costume muito americano de se falar por tópicos. Diga-me lá qualquer coisa sobre a morte, depois o amor, agora a felicidade e a seguir a angústia.
Lembrar-se-ão do filme «O Sétimo Selo», de Ingmar Bergman, em que a personagem de Max Von Sydow jogava xadrez com a morte. Nada obsta a que um sueco se lembre de pôr um cavaleiro medieval a jogar com a morte um jogo que é mais tiro e queda do que as cantigas do Vitinho. Os nórdicos são muito destas elucubrações, desta prestidigitação indolente e sonolenta, própria dos existencialismos de Kierkegaard. Nada a opor. Se falamos da morte, a melhor forma de falar dela é mesmo ter vontade de morrer, se possível morrer, e depois voltar, como pretendia o Agostinho da Silva, que entretanto não voltou e parece-me que apenas porque, das duas uma, ou não há vida para além da morte, ou o pessoal do além é fuinha o suficiente para impedir o homem de vir por aí abaixo. Uns desmancha-prazeres; ou empata-fodas, para ser mais prosaico. São como aquelas pessoas que usam o Facebook só para nos declarar a sua inefável felicidade; uma fotografia de um pôr-do-sol e a legenda inevitável: “Hoje esteve um lindo dia de praia!”. Desconheço o que pensará o caríssimo leitor destas pessoas. Eu cá acho que deviam morrer. Se a corja lá do alto anda a impedir os bons de virem cá baixo porem-nos bem-dispostos, todos estes que não nos deixam fruir do luto das nossas vidas mesquinhas podiam ir-lhes fazer companhia.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Kevin Kline / Brady Barr



Diz-se que o poder é afrodisíaco; o substantivo mais do que o verbo, pois é provável que o querer seja mais afrodisíaco do que o poder. Mas o poder não é apenas a segurança do púlpito e do escritório no último andar de um fálico Empire State Bulding. O poder é também o risco de sucumbir, de pagar a arrogância com a própria vida, se necessário for. No que nos respeita, havemos de invejar - ao jeito do pecado mortal - todos aqueles cuja profissão lhes basta para incitar e excitar a curiosidade das mulheres. Como hipótese limite, havemos mesmo de invejar todos aqueles que simplesmente são felizes. Adiante. Os actores não necessitarão de se revelar como tais. Se o são bem se poderão escusar ao esclarecimento, dado que as redundâncias se assinalam, sobretudo, pela sua esterilidade. Com que soberba e emproamento não o comunicarão os biólogos, sobretudo aqueles cujo objecto de estudo são os animais selvagens e perigosos?
- Eu sou biólogo…
- Ah sim? E qual é a sua área de investigação?
- Os tubarões-tigre…
- Mas isso deve ser perigosíssimo…
- Tem os seus dias…
Sempre com reticências, evidentemente. Todas as respostas reticentes são afrodisíacas. E não o são apenas por manterem as coisas em aberto. Elas resistem às qualificações definitivas e, sobretudo, prometem. Mas o que prometem não é um mundo à la Lady Gaga, onde as pessoas são livres, felizes, e onde não há sombra nem recôndito onde se escondam as perversidades e as patologias modernas; é a promessa de um “já te conto” manhoso; um conto que se conta sempre de outra forma. Um conto que desvenda e oculta. Como se o biólogo especialista em crocodilos carregasse, de alguma forma, fosse ela qual fosse, o toque do casaco da personagem de Nicolas Cage no filme de David Lynch Coração Selvagem, possivelmente o seu filme mais afrodisíaco.
- Sou biólogo…
- Ah sim? E qual é a sua área de investigação?
- Crocodilos…
- Que interessante! Mas isso deve ser perigosíssimo…
- Há animais bem mais perigosos…
- Hum… Fale-me um pouco mais disso…
E o resto, já se sabe, é conversa.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Ana Gomes / Dona Júlia




Escreveu Francis Bacon qualquer coisa como isto (vou fingir que cito de memória): O espírito humano é naturalmente levado a supor que há nas coisas mais ordem e semelhança do que as que realmente nelas encontra; e, posto que a Natureza esteja cheia de excepções e de diferenças, por toda a parte o espírito vê harmonia, acordo e similitude. Daí a ilusão de que todos os corpos celestes descrevem, ao mover-se, círculos perfeitos. A estas ilusões chamava-lhes Francis Bacon Ídolos da Tribo.
Já tivemos oportunidade de o dizer: a semelhança não exige uma correspondência de grau ou uma ausência de desnível. Supomos que poderíamos encontrar dois seres semelhantes na história do feio e na história do belo. Se tratássemos, neste espaço, de questões importantes, sem dúvida que a indispensabilidade da semelhança suscitaria reflexões de carácter epistemológico. Talvez chegássemos à conclusão que somos mais clássicos do que modernos; e a verdade é que não o concluiríamos sem grande pesar. Enfim, conversa para outros blogs. No que nos diz respeito, estaremos mais próximos da bijuteria ruidosa da dona Júlia do que do clangor neurasténico da Ana Gomes, e o Portas que o diga. No fundo, trata-se sempre do mesmo princípio, embora, talvez, quem sabe (?), com cambiantes diferentes (mas, afinal, quão diferentes?). Imaginar a dona Júlia a falar de escândalos sexuais, a piscar o olho às invectivas sub-reptícias a Portas e a Coissoró, e a advogar, pasme-se, a doutrina moral burguesa, não será um exercício tão difícil quanto isso. Convenhamos, contudo, que dizer o que quer que seja em Estrasburgo traz uma finesse que Carnaxide não pode dar, muito embora por lá passe a fina-flor da sociedade portuguesa para aferir a quem pertence a vitória deste ou daquele debate. Continuamos com os desníveis, evidentemente; mas eles não se furtam à semelhança. Ou então estamos condenados pelos Ídolos da Tribo. Não obstante, a nossa semelhança não é da ordem. É sempre a semelhança da desordem, o ténue desnível do caos. A roncaria da Júlia pode ser diferente dessoutra da Ana, mas elas guardam um fundo de semelhança; e é no fundo que as coisas sempre começam.